Festa - Torres Vedras é mesmo um dos maiores concelhos produtores de vinho deste país?
Jorge Alves - Efetivamente é verdade. Nós próprios, a Adega, tudo indica que vamos voltar a ser o maior produtor de vinho em Portugal. No ano passado tivemos uma quebra com algum significado na produção de uva, devida a condições climatéricas, mas este ano voltámos a níveis de produção normais e, embora não tenha ainda dados finais e concretos, mas com alguma certeza posso afirmar que a Adega de São Mamede voltou a ser o maior produtor de vinho nacional.
Aqui, na nossa zona, conseguimos produzir uma média por hectar muito superior a outras regiões nacionais, chegando às 18 a 20 toneladas por hectar, o que nos catapulta para esses níveis de produção, conseguindo ser a região e a Adega que mais vinho produz no país.
Festa - Joaquim Amaro, já está nos órgãos sociais da Adega de São Mamede há uns anos. Assistiu a todas esta mutações que se verificaram e levaram a Adega até ao topo nacional?
Joaquim Amaro - É verdade, já faço parte dos órgãos sociais há mais de trinta, tendo passado por todos eles até à direção, onde me encontro atualmente há oito anos. Eu e o Luís Santos, que não pode estar aqui hoje devido a um compromisso a que teve que comparecer em representação da nossa Adega, temos “uma vida” ligada a esta instituição.
É verdade que estes anos na Adega me permitiram uma ligação muito especial a tudo o que de bom foi acontecendo e é com imenso orgulho que recordo todas as pessoas que para isso contribuíram e que estiveram à frente desta casa, permitindo que hoje em dia possa ser aquilo que é.
Festa - Mas nem sempre foi assim. Houve alturas muito complicadas não só para a Adega de São Mamede como para as adegas de um modo geral?
Joaquim Amaro - Claro que esses tempos também chegaram à Adega e foi muito difícil, para nós e para todos, mas com muito trabalho e dedicação lá se foram ultrapassando. Ainda agora, há poucos anos, com tudo o que passou em Angola e nos PALOP’s, tivemos que sofrer mais um bom bocado, porque a maior parte daquilo que exportávamos era para os países africanos, dos quais Angola representava o maior volume, quando a crise se instalou, para além do mais, tínhamos lá muito dinheiro que não vinha mas também se conseguiu ultrapassar tudo isso e hoje em dia não nos devem absolutamente nada, nem Angola nem os outros países africanos.
Outra coisa de que nos orgulhamos é que também a Adega não deve nada a ninguém. Temos contas certas e com algum saldo positivo para nos dar alguma margem.
Festa - Pelo que é público, para além dos fornecedores também os vossos sócios recebem “a tempo e horas”, o que nas Adegas nem sempre aconteceu?
Joaquim Amaro - No nosso caso sempre tivémos os pagamentos faseados e mais ou menos na altura certa. Há três/quatro anos para cá pagamos aos sócios de três em três meses entre os dias vinte e vinte e cinco, de forma a que todos saibam que nesses dias todos têm o dinheiro nas suas contas, por transferência.
Jorge Alves - É uma forma dos sócios também poder programar a sua vida, os seus encargos, porque é para eles que trabalhamos (para eles e para nós, que também somos sócios, claro) e com eles que trabalhamos.
Tudo isto é um ciclo. Precisamos que os sócios nos tragam uvas sãs, uvas boas, que colaborem connosco e nós, direção, também temos a obrigação de colaborar com todos, facilitando a vida e contribuindo para umas contas saudáveis da Adega e de todos os associados.
Festa - Há pouco falavam do peso que tinham os países africanos nas vossas exportações. Sabendo-se que a Adega exportava quase 95% da produção, como resolveram esse problema?
Joaquim Amaro - Foi necessário uma expansão para outros mercados, em especial para a Europa, Brasil, China, Rússia, Estados Unidos e outra dezena de países e mercados que até aí não vinham merecendo muito a nossa atenção, por termos a produção totalmente esgotada.
Jorge Alves - O próprio mercado mudou radicalmente, ou seja, mesmo que quiséssemos continuar a exportar para os países africanos não conseguíamos porque estes deixaram de ter poder de compra. Então, como o Joaquim dizia, tivemos que mudar um pouco o “chip” e apesar de estarmos ainda no início do caminho, de ainda nos faltar percorrer bastante, estabelecemos parcerias com grandes superfícies, como o Pingo Doce, a Mercadona e outros operadores que já temos contratualizados ou em fase de conversações, o que em conjunto com as exportações para os mercados referidos e a venda a granel que ainda temos nos permitem escoar a produção da Adega, que é considerável.
Festa - Essa alteração de mercados também obrigou a mudanças na vossa Adega?
Joaquim Amaro - Primeiro houve uma transformação nas vinhas dos sócios da Adega de São Mamede. Com essa reconversão e com um aumento na produção, adquirimos o espaço do IVV onde instalámos a Adega 2, onde temos loja de venda ao público, criámos um espaço para eventos, modernizámos a produção com produtos e tecnologias do mais moderno que nos permitem produzir, para além dos bons vinhos que já temos, vinhos de topo, reservas, monocastas, e outros que o nosso enólogo Rui Vieira vem preparando de qualidade superior.
Festa - Nós temos dito que a Adega produz muito vinho, mas afinal qual é a capacidade e produção?
Joaquim Amaro - A nossa capacidade ronda os 50 milhões de litros. Dessa quantidade, quase metade já é produzida em inox, com o resto a ser produzido em cimento revestido a ipox. Num mês podemos receber, sem problema, 26 milhões de quilos de uva dos nossos sócios, chegando a receber um milhão e qualquer coisa por dia, sem problema de maior, sabendo logo qual a casta e a propriedade de onde são originárias, devido ao sistema informatizado de que dispomos.
Jorge Alves - Essa rapidez na receção também nos permite apanhar a uva dos associados na altura certa, não deixando passar aquela altura em que estas põem oferecer maior qualidade.
Festa - É também devido a esse factor que os vossos vinhos tem constantemente vindo a ser premiados pela qualidade que têm?
Jorge Alves - Sim, sem dúvida. Posso dizer que fomos medalha de ouro no recente Concurso Mundial de Bruxelas, um concurso muito prestigiado e importante a nível mundial, com um vinho Syrah, só possível com a tal tecnologia, com a hipótese de separar castas, de vindimar no dia certo, de escolher as melhor parcelas da vinha para cada casta, e aí conseguirmos obter uma qualidade extraordinária com os vinhos, neste caso particular com a colheita 2017 do tal Syrah que produzimos em exclusivo para o Pingo Doce, onde toda a gente o pode procurar nas prateleiras desta grande superfície para depois o degustar, consumir e assim. Mas estamos já a preparar para esta área comercial uma outra colheita, 2018, igualmente de um nível muito bom.
Festa - O que representa para vós ser distinguidos com um prémio com o prestígio que este tem?
Jorge Alves - Primeiro representa um grande esforço que permitiu atingir esse patamar. Depois é um pouco o sentimento de dever cumprido. É este tipo de coisas que nos leva a trabalhar mais um pouco, a levantar de manhã cheios de estímulo. Por outro lado é uma distinção que nos pode abrir algumas outras portas a nível comercial, o que é bom para nós, para os nossos associados e para os nossos técnicos e funcionários, grandes responsáveis por tudo isto ser possível.
Joaquim Amaro - É aqui que o nosso enólogo, o Rui Vieira, representa uma enorme mais valia, pois foi um dos principais incentivadores, com a melhoria considerável conseguida nos nossos vinhos e nas castas utilizadas. Embora seja um trabalho de equipa, como tem que ser, ele foi um grande impulsionador e merece os méritos e reconhecimento por isso mesmo.
Ele, as técnicas que temos e que acompanham os nossos extraordinários viticultores desta região da Ventosa e algumas freguesias limítrofes, em conjunto, todos eles, permitem um trabalho que só pode dar bons frutos e vinhos de eleição.
Festa - Como é evidente a pandemia também vos deve ter afetado. Como sentiram a pandemia e como a estão a ultrapassar?
Jorge Alves - Primeiro, vendemos mais para a distribuição, que não tem sido tão afetada.
Depois, também não vendemos vinhos com preços muito elevados o que permite um mais fácil escoamento nas grandes superfícies e supermercados.
Joaquim Amaro - Também somos muito competitivos em termos de preço/qualidade. Estamos a competir com outros vinhos de países e regiões já com alguma implantação e promoção e este fator, para já, é uma mais valia para o nosso vinho, embora os preços não sejam tão baixos assim, mas para a qualidade que têm são muito apetecíveis.
Com a pandemia, por estranho que possa parecer, as “boxes” aumentaram bastante o volume de vendas relativamente ao aumento que verificamos nos engarrafados. Mas temos esperança que tudo passe em breve e possamos voltar todos ao normal, com os mercados a responder, também eles, dentro de uma normalidade desejável.
Festa - O que será o próximo “normal” para a Adega de São Mamede?
Jorge Alves - Na sequência do que vimos afirmando, prespetiva-se a criação de alguns vinhos destinados a um mercado mais elevado, diferenciados, com valores um pouco superior, é certo, mas com caraterísticas específicas. Reservas, envelhecidos em madeira, e outros que venham complementar a oferta de vinhos de qualidade que já temos a preços mais concorrenciais, porque neste campo, acho eu, somos a Adega com melhor relação preço/qualidade nos vinhos disponibilizados.
Nesse sentido, no final deste ano já vamos lançar um Cabernet Sauvignon, um reserva, um vinho muito bom, que vai ser apresentado como Alma Vitais Cabernet Sauvignon Reserva, que irá anteceder o lançamento de outros como um Adega de São Mamede Reserva, um outro vinho de qualidade superior, com castas específicas, que a Adega 2 agora nos permite, vocacionados para um mercado de vinhos superior que, embora não permitam um escoamento das grandes quantidades que produzimos possam, ainda assim, puxar pelos nossos outros vinhos e ajudar a vender os mesmos, talvez até mudando alguma da nossa própria mentalidade, da nossa forma de vender e dos mercados que procuramos.
Festa - Quantas marcas estão a comercializar atualmente. Já são algumas?...
Jorge Alves - A mais conhecida, neste momento, é porventura o Alma Vitis, branco e tinto, temos o Arieno, um vinho leve de enorme qualidade, em branco e rosé, o Alfama branco, tinto e rosé, vinhos Regionais Lisboa, com um caráter mais jovem, temos o nosso Dom Mamede, branco e tinto, um vinho cheio de história, o Orla Marítima, em branco e tinto, um vinho de mesa com bastante qualidade e mais uma série de marcas, como o Analogia e outras, mas estas são aquelas em que atualmente a aposta tem sido maior.
Festa - Como encaram o futuro?
Joaquim Amaro - Pensamos que o futuro da Adega passa por uma organização ainda mais profissional, muito empresarial, pelo aumento das vendas dos vinhos engarrafados e redução do granel, passa sobretudo por uma união, como a que se verifica, dos sócios em torno da Adega e uma tentativa desta em poder pagar, cada vez mais, melhor aos seus associados, conseguindo-se vingar neste caminho que ambicionamos.
Se conseguirmos continuar neste ciclo de melhor produção e mais qualidade que vimos conseguindo, seguramente que os nossos vinhos serão mais valorizados e os nossos sócios melhor remunerados. Esse é o nosso grande objetivo.
À conversa com a direção da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa
O maior produtor de vinhos de Portugal viu o seu “Pingo Doce Syrah 2017” ser distinguido, entre 8500 vinhos de 46 países produtores, que participaram no “Concours Mondial de Bruxelles” nos passados dias 4 a 6 de Setembro em Brno, com a medalha de ouro.
Este tinto de 13,3º foi o pretexto que nos levou a uma conversa com a administração da Adega Cooperativa de São Mamede, situada na freguesia da Ventosa, em Torres Vedras.
Dois dos seus diretores, Joaquim Amaro e Jorge Alves estiveram connosco, em direto no programa “na revista Festa ESTA NOITE com Carlos Rosa”. Luís Santos, por motivos imperativos relacionados com a Adega não o pode fazer, mas foi uma tertúlia muito interessante onde, para além de mais um prémio conseguido, com um vinho produzido em exclusivo para aquela grande superfície, se falou de vinhos, de produtores, da Adega e da forma como esta tem abordado os desafios do mundo atual.