Carlos Lopes, o 'senhor atletismo' em entrevista
O Campeão Olímpico foi homenageado em Torres Vedras e é o atual diretor do atletismo leonino.
Carlos Alberto de Sousa Lopes nasceu em em Vildemoinhos, uma pequena aldeia próxima de Viseu. Começou a trabalhar depois de ter concluido a quarta classe, para ajudar no sustento da casa. Carlos sonhava ser jogador de futebol no Lusitano de Vildemoinhos mas, a oposição do pai e de algumas pessoas ligadas ao clube (achavam-no muito franzino) não lhe permitiram concretizar esse sonho. Virou-se para o atletismo...
"Em Dezembro de 1966, na São Silvestre de Viseu, estreei-me oficialmente. Por portas e travessas o meu pai já sabia. Ao jantar não disse nada, apesar de lhe notar cara de caso. Fui para a corrida, fiquei em segundo lugar, regressei a casa com a medalha ao peito, todo satisfeito, e em vez de rosto fechado encontrei alegria. O meu pai já sabia que eu fora segundo...
Duas semanas depois fui campeão de Viseu e, logo a seguir fui terceiro no campeonato nacional de corta-mato, em juniores, sendo seleccionado para disputar o Cross das Nações, em Rabat... Fui o melhor português, em 25º lugar. Foi nessa altura, com 17 anos, que pela primeira vez vi o mar."
Em 1967, surgiu-lhe em casa um emissário do Sporting. Era o sonho à beira de realizar-se. Já em Lisboa sofre a primeira desilusão, o prometido emprego de torneiro-mecânico, transformara-se em serralheiro numa pequena oficina. Manteve-se como serralheiro até ir para a tropa. Depois de cumprir o serviço militar (em Lisboa) despediu-se da serralharia e foi trabalhar para o "Diário Popular", como contínuo. Pouco depois passou para empregado bancário no Crédito Predial. Mais tarde trabalharia no BPA".
Destes tempos até à medalha de Ouro Olímpica que fez o orgulho de todo o país, vai um percurso de muita dedicação, muito treino, muita preserverança, mas sobretudo de muito querer e acreditar!...
Carlos Lopes foi homenageado pelo município de Torres Vedras no 10 de junho, tendo sido dado o seu nome a uma avenida da cidade. A que 'desce' da rotunda dos cavalos (como é conhecida) ladeando a Escola Madeira Torres e a APECI.
Esta foi a forma encontrada pelo município torreense para homenagear aquele que foi o principal "causador" do boom que o atletismo nacional conheceu no final dos anos 70 e 80, com um país inteiro a seguir as conquistas do atleta do Sporting e da Seleção consecutivamente por esse mundo fora.
Carlos Lopes que já tinha fortes ligações a Torres Vedras, pois para além de ser a terra da esposa é também aqui que há cerca de uma dúzia de anos reside, em Santa Cruz, passa agora a ver o município, também ele, a agradecer ao atleta tudo quanto este fez pelo engrandecimento do nome de Portugal.
Tivémos oportunidade de conversar com Carlos Lopes, que com uma enorme simpatia, que sempre o caraterizou, nos respondeu a algumas questões colocadas.
Festa - Ainda recorda certamente, com muita saudade e muita emoção, aquela medalha de ouro olímpica de Los Angeles?
Carlos Lopes - Como é natural. Até porque aquilo foi um marco histórico, não só para mim como até para o país. As pessoas, de facto, ficaram 'presas' à televisão durante horas para poder assistir aquele final, com muita simplicidade, mas também fruto de muito trabalho e muito sacrifício, embora sempre com enorme prazer, pois estava a fazer aquilo de que gostava... em especial o fugir dos outros!
Festa - Como se sentiu ao deixar todos os adversários para trás ao fim de 38 kms, nessa maratona tão especial. Foi muito difícil. Sofreu muito?
C. L. - Difícil é sempre, claro. Mas tudo aquilo aconteceu naquela altura porque estava preparado para ser assim. Estudei bem a prova e preparei-a com muito cuidado. Era ali que estava previsto acontecer... até ali era controlar a corrida e esperar que nada de menos bom, ou menos positivo, pudesse acontecer.
Por outro lado nunca sofri a correr. Sempre corri por prazer. A maratona desses Jogos deve ter sido das provas que menos me custou fazer, porque estava mesmo muito bem preparado, muito motivado, e acima de tudo fui para lá com uma determinação muito grande de ser Campeão Olímpico.
Festa - Mas os imprevisto acontecem... duas ou três semanas antes, por exemplo, foi atropelado por um carro quando treinava...
C. L. - Sim, é verdade. Mas isso foi uma contingência que não deixou mossas, felizmente. Já estava a fazer um treino muito específico para a maratona e à saída de Alvalade exitei para o lado onde deveria ir... e fui contra o 'destino' (sorriso). A primeira coisa que fiz quando me levantei foi tentar correr, para ver se estava tudo bem, se conseguia correr...
Mas nem isso impediu que levasse para Los Angeles as minhas convições, a minha estratégia, pois já tinha um plano bem traçado e tinha que o seguir. Felizmente correu tudo como previsto. Correu bem.
Festa - Há uma curiosidade que sempre me ficou e para a qual não encontro resposta. Quando vence a última grande prova internacional de corta-mato e se sagra de novo Campeão do Mundo, em Lisboa, tem umas semanas antes o Campeonato Nacional e fica a quase um minuto do primeiro. Fazia parte da preparação?
C. L. - Não fazia parte da preparação, mas fazia parte da estratégia.
Tenho que ser honesto e dizer-lhe que, nesses Nacionais, perder perderia sempre, não seria era por tanta diferença, pois a preparação apontava para o Campeonato do Mundo.
A corrida que fiz, essa sim, foi mais para dar a idéia de que estava em má forma, de que não seria candidato semanas depois, para não ser pressionado pela imprensa e não colocar em demasia os olhos dos adversários em mim. Resultou! Embora fosse um atleta que sempre teve uma auto-estima muito grande, tambêm sabia fazer um pouco de 'bluff' quando era necessário...
Festa - Para se ganhar tantas vezes tem mesmo que se acreditar nas capacidades que se tem?
C. L. - Quando se trabalha bem e quando se tem consciência do valor, as coisas acabam por acontecer naturalmente. Depois, claro, é saber 'montar' a corrida, tentar antecipar como vai ser e conhecer bem os adversários para se poder jogar com o que de melhor há em nós.
Festa - Sempre planeou tudo muito bem. Sempre foi muito metódico e estratégico. Quando deixou de correr colocou essa capacidade ao serviço do atletismo?
C. L. - Nem por isso. As oportunidades e convites não foram tentadores ou consistentes. Foram sempre mais para se aproveitar do que fui como atleta que para entendimentos e parcerias justas e úteis para todos.
Festa - Não foi 'aproveitado' pelo seu clube de sempre, pela federação ou pelo Comité Olímpico para apoiar os mais novos, ajudando-os a chegar às vitórias...
C. L. - Por vezes fui sendo convidado e participei, e continuo a sê-lo, mas mais de forma pontual. Também entendo que poderia ter sido muito mais aproveitado, mas como isso não aconteceu, não há muito a fazer. Temos que olhar em frente e seguir o nosso caminho.
Festa - Mas com o prestígio e saber alcançados, organismos como o Comité Olímpico não o aproveitaram?
C. L. - Só mesmo de forma pontual. De um modo mais abrangente também tenho alguma pena que não tenha sido, mas isso não acontece especialmente comigo, veja por exemplo o caso da Rosa Mota, em que se passa, e passou, exatamente o mesmo. São opções que respeito, mas claro que poderia haver um maior aproveitamento.
Festa - Tem consciência que, com as suas vitórias e conquistas, foi a pessoa que mais contribuiu para o enorme 'boom' do atletismo que se verificou no final dos anos setenta e anos oitenta?
C. L. - Bem, disso eu não tenho dúvida, e acho que ninguém a tem. Depois, como sempre fui uma pessoa simples, ganhei a simpatia de muitas pessoas e muitos jovens, que passaram a ver o atletismo de outra forma. Passou a ver-se muita gente a correr, muita gente de fato treino...
Festa - Até o Carlos Lopes. Uma vez 'meteram-se' consigo por isso mesmo...
C. L. - (sorriso) Foi engraçado. Foi um miúdo que ia com a mãe e quando me viu de fato treino vestido disse "Este tem a mania que é o Carlos Lopes"... sorri, foi agradável. Estranho, mas agradável.
Festa - Quando terminou a carreira que passou a fazer?
C. L. - Continuei a fazer coisas ligadas ao atletismo, claro. Desde treinador a 'andar' nas escolas incentivando a prática desportiva, colaborar com organizações de provas, sei lá, fiz tanta coisa...
Festa - Em 2013 é convidado para dirigir o atletismo do Sporting CP...
C. L. - Sim, é verdade. O poder contribuir no meu clube de coração para o atletismo são duas coisas que me dão um prazer enorme.
Numa primeira fase foi mais difícil, pois tive que passar a ver o atletismo como dirigente, mas essa fase já foi ultrapassada e agora o objetivo é criar condições para o futuro, com atletas ganhadores que nos possam vir a dar muitas mais glórias, ao clube e ao país.
Nada é fácil, tenho consciência disso, mas temos atletas empenhados, com muito valor, e uma equipa composta por pessoas com um caráter extraordinário, o que ainda me motiva mais e espero muito em breve ser possível, a mim, à equipa, aos atletas e ao clube, colher frutos disso mesmo, deste empenhamento e ambição que nos move.
Festa - O trabalho que está a desenvolver é uma aposta de curto, de médio ou de longo prazo?
C. L. - Tudo é importante. Num clube como o Sporting, para além da formação de jovens temos que pensar que se tem que lutar para ganhar sempre. Nesse aspeto o meu e o nosso trabalho é mais um trabalho de continuidade, pois sempre se trabalhou bem no Sporting.
Isto não implica que a preocupação se resuma à época seguinte. Tem que se pensar mais além. Tem que se criar condições, estímulos e uma cultura de ambição que permita no futuro voltar a colocar o atletismo num patamar de exelência. Que mais que tudo se volte a acreditar que é possível vencer todas as provas que se disputem, sejam elas quais forem.
Festa - O atletismo nacional, de uma forma geral, passa por um momento menos bom. 'Disparou' nas disciplinas técnicas mas baixou muito na sua base, no fundo e meio-fundo. Concorda comigo?
C. L. - Nem tanto assim. Mesmo nas disciplinas técnicas também não tivémos um salto tão grande por parte de atletas portugueses. Temos obtido bons resultados, isso sim, sobretudo com alguns atletas naturalizados portugueses. Mas claro, alguma evolução existiu, só que esses atletas acabam por 'mascarar' o verdadeiro valor atual do nosso atletismo.
Temos muito trabalho pela frente se queremos voltar ao nível que já tivémos...
Festa - A que se deve essa baixa de qualidade, à falta de aposta na formação?
C. L. - Não é bem por aí. A aposta na formação continua bem presente. O Sporting, por exemplo tem mais de centena e meia de jovens na formação, o Benfica tem um número equivalente, e outros clubes também.
O verdadeiro problema estará mais no facto de o atletismo ter passado a ser menos convidativo para estes jovens, que passaram a ter inúmeras e diversas ofertas em que não necessitam de tanto esforço, de tanta dedicação, para no final lhes dar quase só o prazer da prática e da competição.
Festa - Mas o atletismo continua a dar-lhes vitórias...
C. L. - Mas não é bem isso que os jovens de hoje procuram. Esses jovens procuram desde logo vantagens económicas que o atletismo não lhes dá. Veja por exemplo que um atleta de treze ou catorze anos no futebol já ganha dinheiro, no atletismo não vai ganhar nada, para além de eventuais medalhas.
Enquanto não se criar condições cativantes para esses miúdos que gostam e têm jeito para o atletismo, vai ser muito difícil.
Festa - E em que consistem essas condições. Passam pelos clubes, pelo estado, por apoios de empresas?
C. L. - Claro que os clubes têm um papel importante. Mas os próprios clubes não podem ser o patrono do desporto nacional, até porque não têm capacidade financeira para isso. Talvez uma solução passe pela forma como são canalizados os fundos e as 'bolsas' da própria federação e do comité olímpico, permitindo que parte desses valores sejam canalizados para esses mesmos jovens. É uma possibilidade, mas há outras. Quando o dinheiro não abunda, tem que haver criatividade, tem que se fazer render aquele que existe, a bem do futuro da modalidade.
Festa - Estando ligado atualmente ao concelho de Torres Vedras, como já referido, o que acha da potencialidade dos jovens da região e da possibilidade de virem a singrar na modalidade?
C. L. - Esta região tem jovens atletas maravilhosos, cheios de capacidade, talento e potencial. Só lhes falta mesmo uma pista, um local de treino que lhes permita passar a outros patamares e tirar partido dessas potencialidades.
Festa - Essa pista está programada. Há alguns anos que está para ser construída e parece que é desta que irá avançar.
C. L. - Se isso acontecer será muito bom para os jovens desta região e certamente que lhes vai permitir uma evolução qualitativa muito importante, quem sabe até se aí não poderão nascer possíveis futuros campeões, que encham de orgulho esta própria região, que tanto já deu ao desporto...
Palmarés
Principais Marcos Internacionais
do Campioníssimo Português
1976 Campeão do Mundo de Corta-mato.
1976 Medalha de Prata nos Jogos Olímpicos de Montreal.
1977 Medalha Prata no Campeonato Mundo de Corta-mato.
1982 Vence os 10000 metros de Bislett Games em Oslo
1982 Vence a Corrida de São Silvestre de São Paulo, Brasil.
1983 Medalha Prata no Campeonato Mundo de Corta-mato.
1983 2º Lugar na maratona de Roterdão.
1984 Campeão do Mundo de Corta-mato.
1984 2º Lugar no Meeting de Estocolmo.
1984 Medalha de Ouro nos Jogos Olímpicos de Los Angeles,
estabelecendo o recorde olímpico da prova
1984 Vence a Corrida de São Silvestre de São Paulo, Brasil.
1985 Campeão do Mundo de Corta-mato (cross-country).
1985 Vence a maratona de Roterdão
e torna-se recordista mundial da maratona.
A nível nacional, foram tantas as vitórias que seria fastidioso enumerá-las...